quinta-feira, 12 de maio de 2011

Gota de Chumbo

Olá, conforme manifestado, espero que a partir de ontem, tenham, se já não fosse habitual, começado a limpar bem o gargalo das garrafas de vinho, especialmente quando seu lacre for de chumbo. Vejam, não é um simples toque, uma mania de  limpeza, é uma questão quase que de vida ou morte.

Isto é porque integrado ao vinho eis que surge a Podagra da mitologia grega, a deusa fruto da sedução de Afrodite à Dionísio. Esta a deusa da beleza, a Vênus romana, e ele o deus do vinho, seu equivalente Bacco. E por  nós frágeis mortais Podagra também ficou conhecida como a "Gota de chumbo".

Segundo alguns estudos, e aqui para ilustrar, trago as informações dos médicos e professores Júlio Anselmo Sousa neto e Ramon M. Conseza, no artigo A "Gota de chumbo" no vinho, publicado na Revista Médica de Minas Gerais*
A gota sempre foi considerada uma doença das classes nobres, dos glutões e dos devassos. Não sem razão, existe um aforisma atribuido a Galeno, o grande médico dos gladiadores e conhecedor das propriedades do vinho: "A podagra (gota) é filha de Baco e de Vênus". Hipócrates, a quem se atribui a primeira descrição clínica da gota, já suspeitava da relação da doença com comidas substanciosas e vinhos e acreditava no valor da dieta no controle da doença [2].Vários registros históricos evidenciam que a gota foi pandêmica durante o Império Romano e que a forma saturnina da doença foi sem dúvida prevalente [1,2,3]. Estudiosos chegam a hipotetizar que uma das prováveis causas da queda do Império Romano foi o envenenamento crônico por Pb, através da ingestão de alimentos, especialmente de vinhos contaminados, ocorrido principalmente na aristocracia romana, amante dos excessos da mesa e do copo [1,2]. Existem, inclusive, claras evidências históricas de que a maioria dos imperadores romanos que reinaram entre os anos 30 A.C. e 220 D.C. padeciam de sintomas de intoxicação crônica por chumbo [2]
E seguem:
A principal forma de contaminação era consequência da prática largamente utilizada pelos romanos de ferver lentamente o vinho em recipientes feitos ou revestidos com chumbo ou liga metálica contendo este metal. Essa prática visava tornar o vinho adocicado (na época não se conhecia o açúcar) e quebrar sua acidez. Deste modo, após a fervura obtinha-se um xarope espesso, doce, de forte aroma e cor acentuada denominado "sapa" ou "defrutum" ou, ainda, "caroenum" [1,2]. Outro efeito do processo era aumentar o tempo de conservação do vinho, pois com a fervura ocorre a formação do acetato de chumbo (o "açúcar do chumbo") que ajuda na preservação graças à sua ação inibitória do crescimento de microorganismos. Pelas mesmas razões os romanos costumavam também preservar vários alimentos, principalmente frutas, por meio do "defrutum" [1,2].
Mas a coisa não para por aí. Os professores nos dizem que algumas pesquisas reproduziram o método romano encontrando-se o "defrutum" com teor de chumbo de 15 a 30 mg por litro, e até a "sapa" com 240 a 1000 mg de chumbo por litro. O que eles mesmo afirmam ser, em sua próprias palavras: "alarmantes quando comparados aos níveis máximos de Pb permitidos no vinho pela legislação de vários países", que de apenas 0,2 a 0,3 mg/litro. No que esclarecem: "Uma colher de chá, de cerca de 2,5 ml de "sapa", poderia conter até 2,5 mg de Pb, o suficiente para provocar envenenamento crônico. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a ingestão máxima diária é de até 0,04 mg!"

Entre as informações dadas, Souza Neto e Consenza trazem ainda que o chamado envenenamento por chumbo também ocorreu na França, no final do século XIII, na província de Poitou, onde todos os bebedores de vinho sofreram devido a contaminação do vinho que havia sido tratado com litargírio (óxido de Pb), para que ficasse mais doce e esconder a sua acidez, tornando-o parecido com os vinhos do Vale do Loire que eram considerados superiores. A Inglaterra também não passou ilesa, pois nos séculos XVIII e XIX, a classe nobre também teve surtos de gota saturnina pelo consumo de vinhos fortificados, provavelmente contaminados e de maneira exacerbada, especialmente o vinho do porto. Como afirmam os doutores em seu artigo em "1825 a Inglaterra importou mais de 20 milhões de litros de vinho do porto" e dizem mais:
Nos dias de hoje ainda ocorrem casos esporádicos de intoxicação por chumbo proveniente de vinhos contaminados. Na França, durante os anos 50, ocorreu um famoso caso de envenenamento de toda a tripulação de um petroleiro por vinho contaminado com 4 mg de Pb/l [6] e, na década de 70, foi descrita a intoxicação de 23 pessoas por cidra contaminada [7]. Em uma revisão de 15 anos de literatura (1978 a 1992) encontramos 8 artigos [2,4,8,9,10,11,12,13] relatando casos individuais ou de pessoas de uma mesma família que sofreram intoxicação, tendo como fontes de contaminação, na maioria dos casos, a presença de chumbo no revestimento dos recipientes onde se armazenava vinho de fabricação caseira (cerâmica esmaltada, tintas, tubulação, etc...). Outras fontes descritas são ânforas e garrafas decorativas contendo chumbo, utilizadas para o serviço de vinhos.

Contudo ao meu ver o mais interessante começa agora.

Você sabia que aquela taça ou decantador de cristal bem translúcidos e brilhantes podem ser contaminantes  de chumbo?!! Isto pode ocorrer porque em torno de 20 a 32% de Pb é adicionado ao quartzo fundido, justamente para proporcionar esse brilho e essa clareza. E que, um vinho do porto "contendo 0,89 mg de Pb/l colocado em taças ou decantadores feitos com este tipo de cristal, sofre em 4 horas um aumento de 3 vezes no teor de chumbo e, após 4 meses, atinge a 3,518 mg/l"?!! impressionante né!!! Juro que se não fossem médicos entendidos no assunto eu ficaria na dúvida. Mas o negócio não para por aí... e eis que agora meu caro, é que se há de compreender porque todo aquele papo de retirar o lacre de chumbo e limpar bem o gargalo da garrafa.

Uma pesquisa de 1990, na Inglaterra, demonstrou que após a retirada da cápsula de chumbo e de parte da rolha que estava em contato com ela, aspirando-se o vinho com uma seringa houve a presença de 0,057 mg de PB/l e, removendo-se o restante da rolha, sem limpeza prévia do gargalo, o vinho servido no copo apresentou um teor de 0,32 mg de Pb/l, que caiu pra 0,25 mg/l ao enxugar suavemente o gargalo e servir de novo, e despencou para 0,1 mg/l depois da mesma operação só que após sr feita a limpeza de maneira rigorosa da boca da garrafa.

Infelizmente, tive acesso à essas informações muitos anos atrás e não consigo encontrar a fonte original de tais pesquisas. Por ora, deixo com vocês abaixo a referência usada e o link para o artigo dos professores, para que possam, se houver interesse, lê-lo na íntegra. Prometo que continuarei procurando mais informações sobre o assunto.

 Por enquanto, deixo esse post com a certeza de que transmiti a importância de uma boa limpeza da garrafa como um item fundamental no serviço do vinho. Aliás, com ou sem "gota de chumbo", capricho nunca é demais não é mesmo?!! e esses dias quase tive um treco ao ver uma reportagem onde uma suposta Sommelier apenas tirou o lacre e sacou a rolha para servir.  Admirei-me por ter  ela ainda servido o vinho em taças, pois dada a falta de apego da moça aos rituais da boa mesa, penso que poderia tê-lo tomado diretamente do gargalo. Um pecado até de etiqueta para quem é visto como entendedor do assunto.

Diante do exposto até aqui, imaginem e concentração de Pb do vinho, multiplicada pelos resíduos do lacre, multiplicada ainda por uma boa taça de cristal que também contivesse chumbo. Melhor nem pensar. Aliás,  não à toa que a tal Podagra é conhecida epicamente por ser um mal da nobreza, e hoje ainda o seria, já que a maioria dos vinhos viáveis economicamente tem o lacre de plástico e a taça de cristal... ah esse nobre artigo... entre pobres mortais, tá mais pra Cica né!!


*SOUZA NETO, Julio Anselmo; CONSENZA, Ramon M. A "Gota de Chumbo" no vinho. Publicado originalmente na "Revista Médica de Minas Gerais", vol. 3, No. 2, p.115-117, 1993. Disponível em <http://www.academiadovinho.com.br/biblioteca/chumbo.htm>. Acessado em 12-maio-2011.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Fermentados

Uma vez que prometi esmiuçar melhor essa diferenças entre uma bebida e outra, então, por uma questão de ordem e comodidade, nada mais saboroso com este friozinho, que começar com os fermentados. Como o próprio texto da Lei nos diz, a bebida alcoólica fermentada é aquela obtida por processo de fermentação alcoólica, o que também é o processo base para qualquer bebida alcoólica como veremos adiante. Por ora restringindo-nos aos fermentados nossa amiga Wiki (pédia), nos diz que:
A Fermentação alcoólica é um processo biológico no qual açúcares como a glicose, frutose e sacarose são convertidos em energia celular com produção de etanol e dióxido de carbono como resíduos metabólicos. Como este processo pode ser realizado sem a presença de oxigênio é considerado um processo anaeróbico.
Praticamente todos os organismos vivos podem utilizar a glicose para produção da energia necessária para seus processos metabólicos. Neste processo, chamado glicólise, a glicose e alguns outros açúcares são transformados em outras substâncias, com liberação de energia. O que determina quais substâncias serão produzidas depende do tipo de microorganismos e o meio onde vivem.
No Michaelis encontramos ainda:
1 Reação espontânea de um corpo orgânico, pela presença de um fermento que o decompõe. 2 Processo de transformação química acompanhada de efervescência, da natureza da produzida pelo fermento ou semelhante a ela. 3 Agitação. 4 Efervescência moral. F. alcoólica: transformação de glucose em álcool e anidrido carbônico. F. ordinária: fermentação alcoólica, durante a qual as células de fermento ficam à superfície do líquido. Usada no fabrico de cerveja, de vinhos, de alto teor alcoólico e em destilação. F. secundária: fermentação alcoólica lenta, durante a qual as células de fermento se sedimentam no fundo do líquido. Usada no fabrico de cerveja e vinhos de baixo teor alcoólico.
Não sei bem ao certo que temperatura está fazendo lá fora neste momento e, até porque não possuo um termômetro, não posso o declarar com exatidão, mas sei que faz frio, muito frio (pense num lugar gelado) e para ajudar ainda está chovendo.

Obviamente que não há nada extraordinário neste frio que é costumeiro, contudo, devo lembrar que com exceção da região turística da Serra gaúcha, o sulista brasileiro vive intensamente essa coisa de país tropical, e no sul, pouco têm-se de construções próprias (para não dizer nenhuma) para o frio cortante do chamado Minuano. Então eis que surge neste meio um rebento de alívio para almas sedentas por acalorar seu próprio corpo: o vinho.

E, antes que comece a tagarelar ao longo dos próximos dias sobre esse néctar divino, para que possamos dialogar de maneira franca e adequada, quero esclarecer dois pontos: o primeiro deles é legal, no sentido literal da palavra, pois apesar de termos iniciado essa conversa elencando Decreto n° 6.871, vamos fugir um pouco dele já que a Lei específica sobre vinhos e derivados é a Lei nº 7.678, de 8 de novembro de 1988, que dispõe sobre a sua produção, circulação e comercialização, alterada pela Lei n° 10.970, de 12 de novembro de 2004, e regulamentada pelo Decreto nº 99.666, de 8 de março de 1990, textos estes que podem ser vistos na íntegra também nos endereços destacados entre a Legislação. O segundo ponto trata do bem servir, pois é impreterível que alguém elucide um pouco sobre esse aspecto que é mais propriamente sanitário do que qualquer outro, por favor senhores ao tirar daquele maravilhoso vinho o lacre que provavelmente será de chumbo, limpem o gargalo da garrafa antes e depois de sacar a rolha. Peço que considerem o meu quase suplício e prometo que na próxima postagem direi os porquês de tanto drama. Garanto que ficarão agradecidos e estupefatos, Até breve!!!

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Das especificações I

Como mencionei na apresentação, iria dar nomes aos bois e mostrar o registro de nascimento. O que quero dizer com isso, é que cada bebida tem uma classificação própria regida pela lei de um país e, por esta sua "nacionalidade", deve seguir determinados padrões de produção e composição para assim se denominar. 

Bem, assim como não é possível a um indivíduo registrar-se com um sobrenome alheio ao de sua família ou do nada, ignorando as determinações legais do nosso país, denominar-se cidadão brasileiro por exemplo, também não é possível a uma bebida fugir dos padrões que lhe são próprios e, que por serem fundamentais à sua caracterização, estão consubstanciados na legislação nacional e internacional. São marcas propriamente legais como matéria prima, composição, origem e técnicas de produção, que diferenciam um produto do outro e que regulamentadas, ao menos teoricamente, dão mais tranquilidade ao consumidor que por fim, não "compra gato por lebre". Logicamente que ninguém está livre da pirataria, mas esse é um assunto a ser abordado aos poucos e em um momento mais oportuno. Agora o que vale é dizer que em se tratando de bebidas e sua legislação "pau é pau e pedra é pedra" ou pelo menos deveria ser.

Dito isto, quero logo fazer um divisor de águas: sim, dividir "águas" alcoólicas e não-alcoólicas. Nada contra estas últimas, talvez no futuro (bem futuro mesmo) até venha a falar sobre elas (afinal, nunca se pode dizer que dessa água não beberei), mas de momento minha conversa (mole ou não) é etílica!

Rege o Decreto n° 6.871, de 04 de junho de 2009, em seu inciso II, artigo 12, do capítulo VI, que trata da classificação das bebidas que estas serão classificadas em alcoólicas quando possuírem graduação alcoólica acima de meio por cento em volume até cinquenta e quatro por cento em volume, a vinte graus Celsius, dividindo-as ainda, a saber, em:
a) bebida alcoólica fermentada que é obtida por processo de fermentação alcoólica;

b) bebida alcoólica destilada que é a obtida por processo de fermento-destilação, pelo rebaixamento do teor alcoólico de destilado alcoólico simples, pelo rebaixamento do teor alcoólico do álcool etílico potável de origem agrícola ou pela padronização da própria bebida alcoólica destilada;

c) bebida alcoólica retificada que é a bebida alcoólica obtida por processo de retificação do destilado alcoólico, pelo rebaixamento do teor alcoólico do álcool etílico potável de origem agrícola ou pela padronização da própria bebida alcoólica retificada; ou por fim,

d) bebida alcoólica por mistura que é a bebida alcoólica obtida pela mistura de destilado alcoólico simples de origem agrícola, álcool etílico potável de origem agrícola e bebida alcoólica, separadas ou em conjunto, com outra bebida não-alcoólica, ingrediente não-alcoólico ou sua mistura.
Muita calma nessa hora, falaremos mais sobre esses processos mais adiante, como vocês podem ver é melhor se programar, puxar um banco e um copo para molhar a garganta, que essa conversa vai longe, tão longe que é melhor continuarmos outro dia.