Olá, conforme manifestado, espero que a partir de ontem, tenham, se já não fosse habitual, começado a limpar bem o gargalo das garrafas de vinho, especialmente quando seu lacre for de chumbo. Vejam, não é um simples toque, uma mania de limpeza, é uma questão quase que de vida ou morte.
Isto é porque integrado ao vinho eis que surge a Podagra da mitologia grega, a deusa fruto da sedução de Afrodite à Dionísio. Esta a deusa da beleza, a Vênus romana, e ele o deus do vinho, seu equivalente Bacco. E por nós frágeis mortais Podagra também ficou conhecida como a "Gota de chumbo".
Segundo alguns estudos, e aqui para ilustrar, trago as informações dos médicos e professores Júlio Anselmo Sousa neto e Ramon M. Conseza, no artigo A "Gota de chumbo" no vinho, publicado na Revista Médica de Minas Gerais*
A gota sempre foi considerada uma doença das classes nobres, dos glutões e dos devassos. Não sem razão, existe um aforisma atribuido a Galeno, o grande médico dos gladiadores e conhecedor das propriedades do vinho: "A podagra (gota) é filha de Baco e de Vênus". Hipócrates, a quem se atribui a primeira descrição clínica da gota, já suspeitava da relação da doença com comidas substanciosas e vinhos e acreditava no valor da dieta no controle da doença [2].Vários registros históricos evidenciam que a gota foi pandêmica durante o Império Romano e que a forma saturnina da doença foi sem dúvida prevalente [1,2,3]. Estudiosos chegam a hipotetizar que uma das prováveis causas da queda do Império Romano foi o envenenamento crônico por Pb, através da ingestão de alimentos, especialmente de vinhos contaminados, ocorrido principalmente na aristocracia romana, amante dos excessos da mesa e do copo [1,2]. Existem, inclusive, claras evidências históricas de que a maioria dos imperadores romanos que reinaram entre os anos 30 A.C. e 220 D.C. padeciam de sintomas de intoxicação crônica por chumbo [2]
E seguem:
A principal forma de contaminação era consequência da prática largamente utilizada pelos romanos de ferver lentamente o vinho em recipientes feitos ou revestidos com chumbo ou liga metálica contendo este metal. Essa prática visava tornar o vinho adocicado (na época não se conhecia o açúcar) e quebrar sua acidez. Deste modo, após a fervura obtinha-se um xarope espesso, doce, de forte aroma e cor acentuada denominado "sapa" ou "defrutum" ou, ainda, "caroenum" [1,2]. Outro efeito do processo era aumentar o tempo de conservação do vinho, pois com a fervura ocorre a formação do acetato de chumbo (o "açúcar do chumbo") que ajuda na preservação graças à sua ação inibitória do crescimento de microorganismos. Pelas mesmas razões os romanos costumavam também preservar vários alimentos, principalmente frutas, por meio do "defrutum" [1,2].
Mas a coisa não para por aí. Os professores nos dizem que algumas pesquisas reproduziram o método romano encontrando-se o "defrutum" com teor de chumbo de 15 a 30 mg por litro, e até a "sapa" com 240 a 1000 mg de chumbo por litro. O que eles mesmo afirmam ser, em sua próprias palavras: "alarmantes quando comparados aos níveis máximos de Pb permitidos no vinho pela legislação de vários países", que de apenas 0,2 a 0,3 mg/litro. No que esclarecem: "Uma colher de chá, de cerca de 2,5 ml de "sapa", poderia conter até 2,5 mg de Pb, o suficiente para provocar envenenamento crônico. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a ingestão máxima diária é de até 0,04 mg!"
Entre as informações dadas, Souza Neto e Consenza trazem ainda que o chamado envenenamento por chumbo também ocorreu na França, no final do século XIII, na província de Poitou, onde todos os bebedores de vinho sofreram devido a contaminação do vinho que havia sido tratado com litargírio (óxido de Pb), para que ficasse mais doce e esconder a sua acidez, tornando-o parecido com os vinhos do Vale do Loire que eram considerados superiores. A Inglaterra também não passou ilesa, pois nos séculos XVIII e XIX, a classe nobre também teve surtos de gota saturnina pelo consumo de vinhos fortificados, provavelmente contaminados e de maneira exacerbada, especialmente o vinho do porto. Como afirmam os doutores em seu artigo em "1825 a Inglaterra importou mais de 20 milhões de litros de vinho do porto" e dizem mais:
Nos dias de hoje ainda ocorrem casos esporádicos de intoxicação por chumbo proveniente de vinhos contaminados. Na França, durante os anos 50, ocorreu um famoso caso de envenenamento de toda a tripulação de um petroleiro por vinho contaminado com 4 mg de Pb/l [6] e, na década de 70, foi descrita a intoxicação de 23 pessoas por cidra contaminada [7]. Em uma revisão de 15 anos de literatura (1978 a 1992) encontramos 8 artigos [2,4,8,9,10,11,12,13] relatando casos individuais ou de pessoas de uma mesma família que sofreram intoxicação, tendo como fontes de contaminação, na maioria dos casos, a presença de chumbo no revestimento dos recipientes onde se armazenava vinho de fabricação caseira (cerâmica esmaltada, tintas, tubulação, etc...). Outras fontes descritas são ânforas e garrafas decorativas contendo chumbo, utilizadas para o serviço de vinhos.
Contudo ao meu ver o mais interessante começa agora.
Você sabia que aquela taça ou decantador de cristal bem translúcidos e brilhantes podem ser contaminantes de chumbo?!! Isto pode ocorrer porque em torno de 20 a 32% de Pb é adicionado ao quartzo fundido, justamente para proporcionar esse brilho e essa clareza. E que, um vinho do porto "contendo 0,89 mg de Pb/l colocado em taças ou decantadores feitos com este tipo de cristal, sofre em 4 horas um aumento de 3 vezes no teor de chumbo e, após 4 meses, atinge a 3,518 mg/l"?!! impressionante né!!! Juro que se não fossem médicos entendidos no assunto eu ficaria na dúvida. Mas o negócio não para por aí... e eis que agora meu caro, é que se há de compreender porque todo aquele papo de retirar o lacre de chumbo e limpar bem o gargalo da garrafa.
Uma pesquisa de 1990, na Inglaterra, demonstrou que após a retirada da cápsula de chumbo e de parte da rolha que estava em contato com ela, aspirando-se o vinho com uma seringa houve a presença de 0,057 mg de PB/l e, removendo-se o restante da rolha, sem limpeza prévia do gargalo, o vinho servido no copo apresentou um teor de 0,32 mg de Pb/l, que caiu pra 0,25 mg/l ao enxugar suavemente o gargalo e servir de novo, e despencou para 0,1 mg/l depois da mesma operação só que após sr feita a limpeza de maneira rigorosa da boca da garrafa.
Infelizmente, tive acesso à essas informações muitos anos atrás e não consigo encontrar a fonte original de tais pesquisas. Por ora, deixo com vocês abaixo a referência usada e o link para o artigo dos professores, para que possam, se houver interesse, lê-lo na íntegra. Prometo que continuarei procurando mais informações sobre o assunto.
Por enquanto, deixo esse post com a certeza de que transmiti a importância de uma boa limpeza da garrafa como um item fundamental no serviço do vinho. Aliás, com ou sem "gota de chumbo", capricho nunca é demais não é mesmo?!! e esses dias quase tive um treco ao ver uma reportagem onde uma suposta Sommelier apenas tirou o lacre e sacou a rolha para servir. Admirei-me por ter ela ainda servido o vinho em taças, pois dada a falta de apego da moça aos rituais da boa mesa, penso que poderia tê-lo tomado diretamente do gargalo. Um pecado até de etiqueta para quem é visto como entendedor do assunto.
Diante do exposto até aqui, imaginem e concentração de Pb do vinho, multiplicada pelos resíduos do lacre, multiplicada ainda por uma boa taça de cristal que também contivesse chumbo. Melhor nem pensar. Aliás, não à toa que a tal Podagra é conhecida epicamente por ser um mal da nobreza, e hoje ainda o seria, já que a maioria dos vinhos viáveis economicamente tem o lacre de plástico e a taça de cristal... ah esse nobre artigo... entre pobres mortais, tá mais pra Cica né!!
Diante do exposto até aqui, imaginem e concentração de Pb do vinho, multiplicada pelos resíduos do lacre, multiplicada ainda por uma boa taça de cristal que também contivesse chumbo. Melhor nem pensar. Aliás, não à toa que a tal Podagra é conhecida epicamente por ser um mal da nobreza, e hoje ainda o seria, já que a maioria dos vinhos viáveis economicamente tem o lacre de plástico e a taça de cristal... ah esse nobre artigo... entre pobres mortais, tá mais pra Cica né!!
*SOUZA NETO, Julio Anselmo; CONSENZA, Ramon M. A "Gota de Chumbo" no vinho. Publicado originalmente na "Revista Médica de Minas Gerais", vol. 3, No. 2, p.115-117, 1993. Disponível em <http://www.academiadovinho.com.br/biblioteca/chumbo.htm>. Acessado em 12-maio-2011.